O caçador
de borboletas e sonhos
Hoje
descobri que o meu espelho usual está com algum defeito e lamento mostrar a ele
um pouco de minha ingratidão. Pois, ele que ao longo do tempo me fez o favor de
tão calado, refletir cada imagem que fora se transformando em diversas páginas
de minha vida; parece que guardou para si a minha infância e, escondeu em meio
a sua luz, aquele menino tão sonhador, que fazia dos matagais, o seu cenário; e
nele, interpretava o seu melhor papel; que era o de caçar borboletas, sem
nenhuma armadilha que não fossem as mãos e, sem nenhuma intenção em feri-las;
embora muitas das vezes, esmagando algumas delas e, experimentado o gosto amargo
do remorso que lhe fazia sentir o rosto queimar pelas lágrimas que lhe escorria
dos olhos; ali mesmo dentro do mato, escondido.
Caçava-as
por amor e admiração; sem mesmo se importar com o prenúncio de suas histórias.
Caçava-as inebriado pela beleza tão rara e singela, sem se importar com o
percurso ou o desfecho de suas histórias. Caçava-as porque as queria para si,
sem imaginar o quanto estava sendo egoísta. Caçava-as e mesmo sem querer
escrevia um triste “fim” em seus ciclos de vida; e mesmo assim, caçava-as.
E quando
findava o dia, e a imensa escuridão da noite não lhe permitia mais enxergá-las
dentro do mato, ele ainda as via dentro daquela televisão que era obra dele
mesmo; um aprendiz de carpinteiro, que aspirava ser eletricista, e queria
enfeitar a vida com beleza e poesia.
E a sua
televisão era apenas uma invenção artesanal; uma caixinha tão pequena feita com
sarrafos de madeira, cola, pedaço de plástico colorido e, que na sua sapiência
de menino sonhador, ganhava iluminação através de um furinho em uma de suas
laterais, o qual abrigava uma lâmpada tão minúscula que carregada por uma pilha
de rádio, a fazia ter o aspecto de algo que, na época estava tão aquém das
possibilidades de alguém que era apenas mais um, a sonhar com alguma coisa em
meio a tantas adversidades; uma delas, a falta de energia elétrica naquele
bairro tão esquecido lá no fim do mundo.
Hoje que
já sei que, as borboletas surgem de uma lagarta, desenvolvem-se dentro de um
pequeno casulo, batem as asas esforçando-as para fortalecê-las, e depois saem
para o primeiro voo que dá início a outros tantos, numa existência tão
simplória de apenas vinte e um dias, queria reencontrar aquele menino para
contar-lhe tudo isso; dizer-lhe que a história das míseras borboletas que
aprisionava em sua televisão feita de sonhos, tinha começo, meio e fim e que
por muitas das vezes era ele quem mutilava o sonho de vida de algumas delas
quando, embaixo do cobertor adormecia encantado olhando-as a se debaterem
suplicando liberdade.
Queria
reencontrar o menino, não para acusá-lo por sua atitude tão cruel, por impedir
que as borboletas vivessem seus vinte e um dias, e que por muitas das vezes ele
não as permitiu viver mais que um ou dois, pois nunca soube há quanto tempo
haviam se libertado do casulo e novamente as obrigava a machucar as asas,
dentro daquela invenção de carpinteiro.
Queria
reencontrá-lo, não para condená-lo por muitas das vezes ter acordado pela manhã
e encontrar uma delas tão imóvel dentro daquela caixinha com cheiro de fúnebre.
Queria
reencontrá-lo não para impedi-lo de novamente adentrar no matagal e caçar
quaisquer outras vítima que pudesse interpretar tamanha beleza para ele.
Queria
reencontrá-lo para, sobretudo lhe dizer que: As borboletas são tão frágeis como
ele, sensíveis como ele, e que elas, após a dor da metamorfose e a prisão do
casulo, simplesmente voavam, enquanto ele dava asas a sua imaginação.
Ah, se eu
pudesse encontrar aquele menino tão apaixonado pelas borboletas; que nunca
havia se dado conta de suas histórias...
Mas o
espelho o escondeu e, hoje me mostra apenas um rosto tão cheio de rugas,
envelhecido pelo tempo que passou tão devagar dentro daquela cela fria, onde o
mundo podia lhe ver através da televisão de verdade; enquanto ele, não podia
ver o mundo.
E o meu
espelho tão desinteressado se despede de mim, com a desculpa de que precisa
voltar ao tempo, e que isso requer muito sacrifício, pois, até reencontrar o
menino que ficou perdido no tempo e encantado pelas borboletas lá dentro do mato,
será preciso reviver muitas outras histórias que não valem a pena recordar...
Porém,
mesmo sem vê-lo, tenho a certeza que ele não fugiu do espelho, assim como
nenhuma daquelas míseras borboletas nunca fugiam da sua televisão.
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